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31/10/11

Trabaiá cansa (sem frufrus)

É...
Tá cansado?

"(...) no meio da entressafra de filmes brasileiros, que pareciam picados pela mosca da preguiça com títulos insossos (de “Salve Geral” a “Meu País”, passando pelos longas inspirados no espírito de André Luiz) acaba de sair uma pérola. “Trabalhar Cansa”, o primeiro longa-metragem da dupla Marco Dutra e Juliana Rojas, é um exemplo raro de como boas ideias não precisam de grandes frufrus para serem originais. O filme, que transita o tempo todo entre a comédia, o drama e o terror, parece beber no realismo fantástico que fez da literatura latina referência na ficção. Só parece: porque tudo ali é idiotamente real.

Mérito dos diretores, que, longe dos barracos erguidos em áreas de risco ou das querelas entre ditadores resolvidas a pauladas, criaram a sucursal do inferno num apartamento comum habitando por um casal aparentemente comum, sem grandes talentos ou ambições além de montar a árvore de Natal no fim de ano, viajar para a praia no carnaval ou conseguir uma empregada para dar conta da bagunça de casa.

Só que um dia o desemprego bate às portas. O que parecia sólido se dissolve no ar.
Heroica (talvez inspirada nos mantras de medidas anticíclicas para a crise), a mulher Helena (Helena Albergaria) arregaça as mangas e coloca para fora o espírito empreendedor. O sonho se adapta ao bolso e a leva a comprar uma salinha caindo aos pedaços no centro de São Paulo, onde monta um mercadinho simples, de poucos funcionários e muita dor de cabeça.

A dona-de-casa e dublê de empreendedora se revolta com crueldade do mercado, mas não em pagar menos de um salário mínimo, sem registro, para a empregada. O sonho americano termina ali. Calma, Helena é daquelas pessoas que parecem incapazes de fazer mal a uma mosca (o olhar dela, inclusive, até parece de uma mosca), mas não demonstra a mesma timidez ao propor à empregada que receba menos de um salário mínimo por mês, sem registro, ainda que o serviço exija que durma na casa, para lavar, limpar, passar, cozinhar e dar de comer para a filha do casal.

O mercado não é promissor, mesmo assim, a fila de desempregados em busca de oportunidade se agiganta do lado de fora. A pressão a leva a abandonar o papel de esposa doce do lar. A voz calma e os olhos aparentemente inofensivos dão lugar a pitis, paranoias, cansaços. A mulher que se anunciava compreensiva agora diz ao marido que ele é um “bosta” porque o processo de recolocação no mercado demora mais que o planejado.

Mais que o drama, o filme capta com uma câmera crua (a fotografia é precária, a trilha sonora não tem música, o cenário é quase amador) a pobreza de ideias que esfola a classe média, vítima e algoz do próprio mecanismo que cria e aceitar jogar, como cordeiros.

Único personagem aparentemente lúcido na trama, Otávio mergulha na crise ao se ver cercado de idiotas. Impactado com a demissão, ele passa a procurar novas vagas, e o que encontra são gerentes de recursos humanos que enchem bexigas pintadas com olhos e boquinhas e representam o chefe direto; na meia idade, é obrigado a participar de um “se vira nos 30 para ficar com a vaga” dizendo à mediadora quais os talentos que imagina ter o jovem concorrente recém-formado; ou participar de palestras motivacionais, encontros para contatos e atividades de um animador de plateia que ensina a liberar “o animal” dentro do terno e da gravata e a não desanimar jamais.

É como se o Xou da Xuxa, que a olhos adultos parecia show de horror (com luzes, clichês, gincanas, bola, balão e bambolê) fosse transportado para os postos de trabalho, onde homens de barba já não precisam lutar pela sobrevivência, mas para convencer a gerência que é dócil o suficiente para merecer estar vivo.

É hilário, mas duramente real. Diante da crise, que estraçalha o empregado e também o pequeno empreendedor, o mundo se infantiliza para evitar, talvez, desistências coletivas. Mais que isso: como matrioshkas (aquelas bonecas russas que saem umas de dentro das outras), a teia de exploração se reproduz nas pontas – o mercado explora o trabalhador, que explora as empregadas, que transgridem as regras porque simplesmente não existem regras sem juiz nem carteira de trabalho nem mercado regulado. É quando a cobra morde o próprio rabo, e já não se sabe se os atores se tornam algozes porque desprezam as regras do jogo ou porque simplesmente as aceitam.

Ao fundo, é possível ouvir as palavras de Marina Colasanti que, certa vez, resumiu os perigos de se acostumar demais a uma vida medíocre. “E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão”. Amplidão que parece ausente em todos os cantos daquela casa e daquele mercado fadado ao desastre"

Fonte: Carta Capital

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